20.3.09

Memórias, livros e reflexões

"Mulher com livro" - Picasso

Tive um tino pelo comércio que não foi adiante. Quando era pequena (8 anos? 9? Não sei, por aí), resolvi vender mate na feira. Na época, a feira livre acontecia uma vez por semana na minha rua, exatamente na porta da minha casa. Era um transtorno, ficava a rua toda fedendo a peixe, etc. Com o tempo a feira mudou de lugar, e hoje acontece mais pra longe. Mas como ia dizendo. Eu e minha prima tivemos essa ideia, numas férias. Fomos até um supermercado e pedimos um caixotes de papelão. Minha mãe desenhou um belo cartaz colorido escrito MATE e o preço (em cruzeiros, cruzados, cruzados novos, quem pode saber, hoje em dia?). O mate gelado ficava numa garrafona térmica, e nosso investimento (nosso = dos nossos pais) foi comprar, além do mate e do açúcar, copos de plástico, daqueles tamanho "refrigerante", e dos pequenos, de café, que era uma cortesia nossa aos clientes. Então ficávamos ali, na frente da garagem da minha casa, vendendo mate para quem fazia compras na feira e ficava com pena daquelas duas crianças entusiasmadas com seus incríveis lucros. Conversávamos muitos com nossos clientes, e com isso empurrávamos outro copo de mate. Lucros estratosféricos, como vocês podem imaginar. Depois disso, eu e minha prima (sempre ela) tivemos um outro negócio, uma gibiteca (ainda não tinha esse nome, chamávamos de biblioteca de revistinha, mesmo), juntando nossas imensas coleções de revistinhas em quadrinhos. Era incrível, tudo catalogado, e as pessoas tinham fichas para anotar os empréstimos.
O que me lembro dessa experiência era o contato com o público. Achava absolutamente incrível isso de atender as pessoas e prestar-lhes uma espécie de serviço, oferecendo uma bebida gelada ou uma revisitinha nova. Por isso também, sempre gostei daquelas feiras de ciências do colégio. Estudar um assunto, fazer umas maquetes, e explicar para o público. Lembro de uma vez, eu era bem pequena, estava talvez na quarta, quinta série, e teve uma feira de ciências. Éramos uma dupla, eu e minha amiga M. (que até hoje mora no mesmo bairro, e às vezes esbarro com ela por aí. Ela é dona de um belo salão de cabeleireiro.), e nosso tema era "Mamíferos". Eu era muito empolgada com isso, queria que nosso estande fosse realmente inesquecível. Aí meu pai deu uma ideia: por que não fazíamos um brinde personalizado, para entregar aos visitantes? Então, acreditem se quiser, fomos a uma gráfica mandar fazer sei lá quantos calendários daqueles que cabem na carteira, com a imagem de dois gatinhos (mamíferos!), e escrito "Lembrança da feira de ciências, ano tal, colégio tal, Fulana e Beltrana, Estande Mamíferos" (ou algo do gênero). E mais incrível ainda: naquelas priscas eras, meu pai descolou uma gráfica mais barata, que ficava no subúrbio de Maria da Graça. E o metrô chegava lá. Então fomos nós: eu, M. e meu pai, de ônibus e depois metrô, do Leblon até Maria da Graça, pra mandar fazer os calendários de lembrança!* Pior é que deu certo, os calendários foram um grande sucesso, nosso estande bombou.
Depois disso, sempre que pude, agarrei essas oportunidades de vender coisas ou atender o público, desde que fossem coisas que realmente me empolgassem. Por um período brevíssimo trabalhei em uma loja de lingerie no Barra Shopping - devia eu ter 16 anos, por aí. Para além do fato de ser no Barra Shopping, era um trabalho muito ruim, em especial porque era preciso mentir muito para fazer uma venda, o que me constrangia horrores. Mas quando fui estagiária de uma editora, fui para a Bienal trabalhar no estande vendendo livros. Isso eu adorava. Eu conhecia o catálogo, conhecia os livros, dava sugestões, conversava com as pessoas, era ótima vendedora, sem falsa modéstia. Depois, viajando em turnês com Marido e seu grupo, vendi muito CD, muito mesmo. Mesmo na Polônia, na Hungria, na Alemanha, onde mal podia me comunicar, montava uma banquinha depois dos shows e vendia disco à beça, explicando cada álbum, esclarecendo dúvidas, contando histórias, rindo com as pessoas.
Isso tudo porque sempre me fascinou esse contato com as diferentes gentes, ouvir suas histórias e contas as minhas.
Outro exemplo são as cartas de jornal, uma seção que sempre leio. Até a parte de Defesa do Consumidor, as reclamações, aquela parte "Programa Furado", onde reclamam de bares, restaurantes, cinemas etc. Não deixo passar, tem sempre ali uma história interessante. (Não chego ao ponto do Tire Suas Dúvidas do Imposto de Renda. Calma lá, também não é assim.)
Estou dando uma volta imensa para chegar ao motivo deste post. Mas e daí, não é mesmo?
Aí, quando fui trabalhar na Editora 1, lá pelas tantas caí no buraco negro do recebimento de originais não solicitados. Na verdade, tinha um estagiário para trabalhar comigo, a quem competia, entre outras coisas, mandar cartas dizendo que a análise demorava muito, ou então que não publicaríamos o livro etc. De quando em quando juntavam-se umas pessoas para olhar esse material imenso e de péssima qualidade. Nunca vi sair dali um livro publicável. Só aporrinhação advinha da amaldiçoada pilha de originais, como por exemplo os autores ligando para saber notícias. Mas eu lia. Era sempre ruim, mas eu sempre lia um pouquinho. E, mais do que os originais, o que me fascinavam eram as cartas de apresentação, onde o aspirante a autor falava sobre si e seu livro. Coisas incríveis. Algumas dessas cartas mereciam até ser publicadas, ainda que os textos que elas apresentavam, não. Porque nessas cartas as pessoas se abriam de uma maneira muito franca, e por vezes bonita até. Houve casos em que eu mesma parei para responder essas cartas, não porque fossem bons escritores, mas porque eram boas pessoas, que me pegaram num dia assim ou assado. Além dessas, tinha também as outras cartas, que as pessoas mandavam para ser encaminhadas para os autores. Nelas, contavam como tinham gostado de ler seus livros, e muitas vezes eram depoimento sobre como suas vidas tinham mudado por causa dos livros. Vi cartas endereçadas ao Fernando Pessoa e ao Oscar Wilde, cartas de crianças, cartas de pessoas de cidades que nunca ouvi falar, cartas de toda espécie. Um dia vi uma carta de um presidiário, pedindo livros. Ele estava preso, tinha lido e gostado muito de um livro X, viu que havia outros livros do mesmo autor e perguntava se a editora não podia mandar de presente mais livros para ele. Fiquei comovidíssima com a situação. Aquele envelope todo manuscrito, a letra caprichada, aquele endereço que incluía um número de cela (!), um preso em busca de conhecimento e cultura. Fui falar com os diretores, tínhamos que mandar livros, um trabalho social etc. etc. Eles me olharam de esguelha. Porque, como eu não trabalhava nessa área de atendimento ao cliente, na verdade não sabia do tanto de carta de preso que chegava. Eram muitas. São muitas, hoje também, na Editora 2, onde trabalho. Alguém deve estar fazendo um trabalho junto a esses presos, porque as cartas seguem todas o mesmo modelo. Mas agora vi aqui outro dia um tipo diferente de carta. Era de uma diretora de colégio público, de ensino fundamental, de uma cidade cujo nome não lembro, e antes nunca ouvira falar. Ela pedia também doação de livros. Dizia que recebia alguns livros dos porgramas de governo, mas que a biblioteca era insuficiente, se não poderíamos enviar alguns exemplares para sua escola. Agora, isso me deixou passada. Fico perplexa de ver que uma diretora de escola ache razoável escrever para várias editoras (sim, sim, a carta era uma xerox) pedindo que essas empresas, cujo negócio é vender livros, doem exemplares para a sua pequena escola. Por melhor que seja sua intenção, é um desplante.
Desculpem-me, não conto grandes novidades a vocês, tem coisas muito mais vergonhosas acontecendo no país, mas pra mim esse foi o momento-revelação da falência do entendimento do papel do Estado pelo cidadão.

* Só pra vocês entenderem: na época a estação mais perto era Botafogo, aonde chegamos de ônibus. De lá, passamos por Flamengo, Largo do Machado, Catete, Glória, Cinelândia, Carioca, Uruguaiana, Presidente Vargas, Central, Praça Onze, Estácio -- Baldeação para a Linha 2 -- São Cristóvão, Maracanã, Triagem, Maria da Graça. E depois voltamos. Veja: tudo bem se você precisa fazer esse trabalho todo dia pra estudar, pra trabalhar, o que for. Isso é normal. Agora, outra coisa bem diferente é você levar duas crianças nesse trajeto para fazer uns calendários numa gráfica, para uma feira de ciências.

7 comentários:

Anônimo disse...

Lindo lindo, este texto, as memórias, seu pai, você. Obrigada, Maria

Anônimo disse...

Maria, que lindo mesmo, o nome e o post, as lembranças, bom ver vc animada e escrevendo com vontade. Não entendo sua braveza com as moças das escolas que pedem livros, elas tem abandono semelhante ao do presidiário no que concerne ao livro, não suprido pelo estado... Legal saber que há um músico na família, ser que eu acho um CD dele pela rede? :))
abraço,
clara lopez

Anônimo disse...

Só agora percebi que o Maria não se refere a vc, mas ao nome da leitora... entrei numas de que era sua mãe falando com você e usando seu nome real, que loucura... de todo modo, continua lindo (o nome:)
abr,
clara

Anunciação disse...

Vou ruminar mais um pouco esse seu post,a parte que fala da diretora que pede livros pra escola.Não gosto de me precipitar em julgamentos se bem que,na verdade eu já tenha um pensamento a respeito;mesmo assim,prefiro pensar mais.

osvjor disse...

taí um dos seus talentos natos, lidar com gente. admirável. já pra mim isso pode ser um sacrifício hercúleo... agora, uma das coisas que mais me chamaram a atenção no post foi o rigor com que você refez o trajeto até o aprazível subúrbio de Maria da Graça. como morei praqueles lados durante longos anos, fui checar e vejo que vc não esqueceu de nada, até mesmo a infame estação do sombrio bairro de Triagem está lá no itinerário. :) espero que vc nunca mais seja obrigada a fazer esse périplo, pq a decadência daquela região foi mosntruosa nos últimos 15, 20 anos. mas, se precisar, posso organizar um safári com um pessoal que conheço, com um 4 x 4, atirador de elite a postos, guia monoglota e filtro solar grátis. t++

Anônimo disse...

ahahahahahha, Ana! estou lendo pq vesti a carapuça! quando dava aula na universidade 1 (estadual, agora tou na 2, federal) também pedi livros a várias editoras, inclusive comerciais mesmo, ahahah. porque realmente a biblioteca da uni era uma pida (a primeira vez que entrei fiquei entre chorar e rir) e algumas editoras as vezes mandam pra fazer propaganda (eu mesma, como professora, recebo coisas da editora 34, de vez em quando da cosac naif...). enfim, uma das editoras respondeu ao email (eu nao mandava xerox, ahahah) super grossa (a maioria não respondia ou respondia que tinha desconto de 30$ pra professor, etc) dizendo quase isso: minha filha, visamos o lucro! eu na epoca achei engraçado, claro que entendi, nem fiquei com raiva. agora estou lendo o outro lado (vc) e lembrei da história. beijos. Surya (fazendogenero)

Anônimo disse...

Clara, de fato, a Maria não sou eu, e anônimo não é a minha mãe. Mas tudo bem, poderia perfeitamente ser, por que não?
Anunciação, e então, pensou? Quero saber seus pensamentos!
Osvjor, tenho de confessar que colei. Fui no site do Metrô e copiei o itinerário. De cor eu só sei de Cantagalo até Central. E está de bom tamanho.
Surya querida, saudades de você. Bom, mandar livro pra professor é absolutamente comum e compreensível. Divulgação escolar, tem departamentos só pra isso nas editoras. Mas o bizarro é escrever pedindo qualquer livro, qualquer coisa. Mendicância absoluta. E é mesmo incrível como a perspectiva sobre um assunto pode mudar dependendo do local de onde se fala. É espantoso.